Em nome da família: <br>mistificar e mistificar!

Fernanda Mateus (Membro da Comissão Política do CC do PCP)
A 15 de Maio assinalou-se o Dia Mundial da Família, ano em que se comemora o 10º aniversário do Ano Internacional da Família.

Portugal confronta-se com uma maioria e um governo de direita que, como nenhum outro depois do 25 de Abril, se assume como porta-voz de concepções conservadoras e obscurantistas, sendo protagonista de um conjunto de medidas legislativas - pacote laboral, privatização da segurança social, ensino, saúde -, que representam a destruição de um conjunto de importantes direitos individuais e colectivos dos trabalhadores, das crianças, dos jovens e dos idosos. E que representam um verdadeiro atentado à estabilidade e à qualidade de vida da grande maioria das famílias.

Mistificando os seus verdadeiros objectivos, a actual maioria PSD-CDS/PP não poupa esforços para se apresentar aos olhos das(os) portuguesas(es) como os campeões na protecção à família. E com que objectivos?

1 - Não aceitam as modificações verificadas nos últimos 30 anos na estrutura e composição das famílias, atribuindo-lhes uma suposta desagregação e perda de valores. O ministro Bagão Félix afirma: “Às vezes há uma tendência para sobrevalorizar as famílias ditas menos estruturadas em detrimento das ditas normais” (1).

Pretendem, a partir do Estado e das alterações legislativas determinar qual é a família ideal, estigmatizando todas as outras. É de novo o mesmo Ministro que afirma: “Obviamente que o conceito de família que defendo como o melhor é a chamada família tradicional ou, se se preferir, estatisticamente normal”. (2)

2 - Explícita ou implicitamente vão fomentando a ideia de que a família está em crise, que se quebram os laços “naturais” de solidariedade no seu seio. “Vivemos numa sociedade mais individualista, que se organiza à volta do efémero em crise de espiritualidade. (...) E isso causa nas famílias uma imensa perturbação.” - afirmou Margarida Neto, actual Coordenadora para as Questões da Família (3).

O que está em curso é a tentativa de retorno à família tradicional, que assume plenamente a responsabilidade pela reposição da força de trabalho dos seus membros activos, pela renovação das gerações, pelo apoio aos idosos, o que implica o regresso a velhas concepções sobre o papel da mulher na reprodução, a quem se pretende limitar cada vez mais a maternidade como um acto livre e responsável e criar condições psicológicas e sociais que levem as mulheres a “adaptar” a sua condição de cidadã e trabalhadora às “responsabilidades” na maternidade e na família.

3 - “Para mim o conceito de família inclui em si a ideia de procriação”, afirmação de Bagão Félix (4) que contém concepções ideológicas que não aceitam como normais famílias que não tenham como finalidade a reprodução (e existem!) e aquelas que, por problemas de infertilidade, nunca poderão cumprir esse objectivo. Entretanto, o Governo fomenta políticas natalistas assentes na proibição do aborto legal; na recusa da implementação da educação sexual nas escolas e nas medidas de prevenção da maternidade precoce; na recusa da sexualidade feminina como fonte de prazer; na destruição da maternidade-paternidade como responsabilidade específica e conjugada – dos pais, das entidades patronais e do Estado.

4 - Criam falsas dicotomias entre o papel insubstituível da família e o papel intervencionista do Estado, visando esconder que a sua prioridade é a sujeição das famílias à lógica de desresponsabilização dos deveres do grande patronato para com as(os) trabalhadores(as) (salários condignos, respeito pelos seus direitos individuais e colectivos e para com a necessária renovação das gerações) e dos deveres do Estado na salvaguarda da protecção social da maternidade-paternidade, nos apoios à infância, aos idosos e à família.

O recente protocolo assinado entre o Governo e as IPSS aponta o reforço das sus verbas às que adoptem um horário de funcionamento das creches superior a 11 horas diárias, se corresponder à necessidade expressa por 30% de pais. Este é um exemplo de como o que está em causa não é o superior interesse da criança, mas satisfazer a crescente “adaptabilidade” do(a) trabalhador(a) à lógica da empresa e do mercado de trabalho.

O papel insubstituível da família significa assim deixar as crianças e as famílias à sua sorte, e a pagar a factura da privatização da segurança social, do ensino, da saúde, da redução dos apoios a crianças com necessidades especiais, etc.

5 - Quanto à chamada diferenciação das prestações sociais em benefício das famílias mais numerosas é, na prática, a redução de importantes direitos sociais da grande maioria das famílias que tem um número médio de 1 e 2 filhos. A verdade é que em 3 milhões de núcleos familiares, apenas 0,12% tem 6 filhos; 1,2% tem 4 filhos; 5,2% tem 3 filhos.

Também o objectivo do Governo de estabelecer mecanismos de diferenciação positiva para as famílias que mantêm e acolhem os seus ascendentes em casa, é uma medida socialmente injusta e que visa exclusivamente libertar o Estado das suas responsabilidades sociais na criação de uma rede de apoio aos idosos. É falsa e injusta a pseudo dicotomia entre o papel da família e o papel do Estado. Cada um desempenha papéis únicos e insubstituíveis, numa política que vise efectivamente a dignificação da vida dos idosos.

(1) (2) Diário de Notícias, 11.07.02.
(3) Público, 21.04.04.
(4) Público, 7.05.02.


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